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RESSIGNIFICAÇÃO:

UM ATLÂNTICO ENTRE NÓS

“Por mais que a mulher busque no seu interior aquela força pra sair da química, pra se assumir como negra, pra se aceitar, é uma batalha muito grande porque a gente sofre represália desde que nasce. [...] Todas as mulheres negras da nossa sociedade querem uma libertação, querem se aceitar. É difícil você, como mulher negra, falar ‘dane-se, a partir de hoje eu vou ser o que eu sou’ porque ninguém te aceita. E ninguém quer viver num mundo em que não se é aceito” - Liana Mascarenhas

ichelle queria que o cabelo voasse. Fios leves, que planassem quando o vento batesse. Um novo cabelo comprido pra ter a mania constante de esconder algumas mechas atrás das orelhas. Um .........

M

 

cabelo longo pra ser enrolado na ponta dos dedos, sedoso o suficiente para se movimentar de um lado pro outro a cada passo dado. Um cabelo que possibilitasse os penteados que ela via nas revistas, parecido com o das moças da novela. Que escorresse ao redor do rosto formando uma moldura. Michelle queria um cabelo liso.

 

Quando completou 11 anos, insistiu para a mãe passar pasta na sua cabeça. Dona Marinalva ficou apreensiva: o alisante era a base de soda cáustica. “Será que é um produto muito forte pra uma criança?”, pensou. A pequena Michelle insistiu um pouco mais. Foi o suficiente para Marinalva ceder à ideia da garota. Afinal “cabelo baixo é mais bonito, é mais apresentável”. Animadas, as duas foram pro salão, no centro da cidade. Pouco tempo depois, seu cabelo frisadinho que teimava em ir para o alto foi obrigado a descer alguns degraus. Ele agora estava nos ombros de Michelle, era até possível sentir alguns fios fazendo cosquinha na nuca. No rosto da menina, os olhos brilhavam e os dentes teimavam em aparecer: era impossível conter o sorriso de felicidade.

 

Anos se passaram, aproximadamente nove. Nesse espaço de tempo, Michelle experimentou outras técnicas além da pasta, como relaxamento e permanente afro. Às vezes alguma cabeleireira falava de um novo alisamento com guanidina, de uma escova progressiva ou definitiva. Era um cardápio de opções que sempre se renovava. Não importava que seu couro cabeludo ficasse ferido, nem que a raiz crespa ficasse aparente depois de poucos dias: com o cabelo mais liso Michelle era “aquela morena bonita”. Com o cabelo natural ela era mais uma “neguinha do cabelo duro”, a menina do “cabelo de Bombril” da escola. Era bom se ver no espelho com o cabelo mais baixo, liso, que voava quando o vento batia.

 

Anos se passaram. Michelle Mendes, 35, cresceu. Seus traços no rosto amadureceram, ela se descobriu no rap. É quase metade de julho, um dia ensolarado de inverno. Sentada em uma cadeira, Michelle tem os cabelos trançados por suas duas amigas, que também são trancistas: Natalie Akil, 34, e Naiara Pinheiro, 23. Em meio a pentes, tesouras e mechas de cabelo sintético, as três conversam sobre suas trajetórias comuns. Todas elas tiveram cabelos alisados na infância e na adolescência.

Eu cresci com a minha mãe [que é negra] alisando o meu cabelo e falando que eu tinha que manter ele lisinho. Com a minha mãe falando que eu tinha que apertar o meu nariz pra ele ficar mais fino, que eu tinha que embranquecer a minha família e casar com uma pessoa branca, que eu precisava melhorar até o meu sobrenome, porque ‘Santos da Silva é sobrenome de preto’. Ela acha que se você se embranquecer você sofre menos”

PRISCILLA SILVA, BANCÁRIA

Jullyet Souza e Nathália Negrão - Foto: Gabriela Isaias

Jullyet posa no Complexo do Caju - Foto: Gabriela Isaias

A trancista penteia Nathália - Foto: Gabriela Isaias

Morena, mulata ou negra?

Escolher fazer um alisamento e alterar a estrutura do cabelo crespo nos dias de hoje pode ser bem mais complexo que uma questão de gosto pessoal. Alguns penteados camuflam o pertencimento étnico e muitas vezes são escolhidos por mulheres negras que querem fazer as pazes com o espelho ou buscam um visual mais “aceitável” para o mercado de trabalho. A influência agora não é necessariamente um ideal branco de beleza, como há décadas atrás, mas sim uma aproximação com a aparência mestiça da negra clara. É a reivindicação de um sangue branco na família durante a busca por aprovação social.

 

No livro “Claros e Escuros” (1999), Muniz Sodré, jornalista, sociólogo e escritor brasileiro, relata que muitas vezes a cor da pele importa tanto quanto o tipo de cabelo. Muniz explica que, nas leituras sociais, um cabelo liso/ondulado e comprido pode codificar uma mulher negra como “mulata”, “parda” ou “mestiça”. Para ele isso ocorre porque o cabelo é estratégico na revalorização de identidades e tem sido enaltecido em uma época em que o visual é o que importa. “A obsessão contemporânea com o cabelo explica-se igualmente pelo fato de que o atual discurso midiático sobre o negro é mais estético que político, doutrinário ou ético”, argumenta o autor.

 

Importante é ressaltar que o cabelo, por si só, não diz tudo. Nem todas as modificações no cabelo e no corpo de pessoas negras é feita por motivações políticas. Deve-se levar em consideração a história de vida e o contexto de cada sujeito. Há negros que alisam o cabelo porque valorizam um ideal branco de beleza; há aqueles que optam pelo alisamento a fim de atingir uma aparência mestiça; e também há os que escolhem a técnica por simples possibilidade de mudar sua aparência física com freqüência, o que também tem influência da moda. Sob essa última leitura, os fios crespos alisados podem ser entendidos como apenas mais um jeito de estilizar o cabelo que se tornou característico da comunidade negra ocidental.

As pessoas acham que se me chamarem de preta, de negra, vão me ofender. Não tem porquê. Eu não sou morena, eu sou negra. Então me chama de negra e de preta. O que me ofende é me chamar de morena”

JULIANA MARINHO, TRANCISTA

A textura do esquecimento

“Na casa amarela da pedra da cruz”, disse Karla, em áudio curto gravado no celular, ao explicar com mais detalhes em qual lugar dos vários corredores estreitos ela mora. É lá no alto do morro, onde as crianças sobem a laje pra soltar pipa no fim de tarde, que a trancista vive com seus três sobrinhos. O Vidigal nos fins de tarde tem um céu azul, quase lilás, que evidencia as luzes das casinhas com tijolos aparentes. Em cada um desses pontinhos dourados vive uma família. E é na casa amarela simples, com uma bela vista pro mar, que Karla Raymundo trabalha trançando cabelos. Morar na favela às vezes tem suas vantagens.

 

“Acho que desde que eu tive cabelo pra trançar existiu trança na minha vida”, diz a trancista, com carregado sotaque gaúcho. Karla saiu de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, há pouco mais de cinco anos para estudar Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desde então, transformou sua habilidade para trançar cabelos em renda: “Trançar é o meu instrumento de trabalho, o meu ganha pão, o sustento dos meus sobrinhos, da minha casa e da minha vida, mas também é uma terapia pra mim”, afirma. Ela lembra que aprendeu a técnica ainda criança, ao ver as mulheres mais velhas de sua família cuidando dos cabelos umas das outras.

 

Na laje simples do último andar, Karla conta algumas das lembranças que coleciona. Aos 33 anos, a gaúcha afirma que recebe muitas clientes em sua casa para trançar. “Cada uma tem sua história, mas todas elas levam ao racismo, todas as histórias são racistas”, diz. Enquanto mantém o olhar fixo no oceano, ao longe, Karla relata que a maioria das mulheres que vão até ela trançar não conhecem suas próprias raízes. “Eu tenho clientes que, com três anos de idade já passavam química na cabeça. Eu canso de pegar meninas aqui que nunca se viram, não sabem qual é a textura natural do seu cabelo, não lembram”.

 

Segundo Karla, muitas dessas pessoas só conheceram os próprios fios depois de adultas, através das tranças – bastante utilizadas por mulheres negras que decidem abandonar a química e assumir os cabelos naturalmente crespos. “Ensinaram elas a se odiarem”, comenta a trancista, afirmando que muitas meninas chegam em sua casa com a autoestima baixa. “Tu não conseguir se ver com o seu próprio cabelo é o que o racismo faz com a gente. E ele faz todo dia”, reflete.

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Eu cheguei a pegar a época do pente quente, que era tipo uma forma mais rigorosa de chapinha. Ele era esquentado no fogão, na brasa, e era passado no cabelo empastado de óleo. Fazia até barulho de fritura. Era terrível, mas eu amava porque a minha avó só fazia isso em data festiva”

SKARLETI ULLY, TRANCISTA

Irmã mais nova da trancista Skarleti Ully, Stefany Marques usa as tranças africanas como modo de passar pela transição capilar - Foto: Gabriela Isaias

Na boca do fogão

Tudo começou dentro da cozinha: manteiga, gordura de porco, fubá, batata, café, facas aquecidas. Durante um certo período da escravidão, africanos e seus descendentes nascidos nas Américas utilizavam os ingredientes que estavam ao seu alcance para condicionar, amaciar e manter o cabelo brilhoso. Mas foi com toalhas quentes, ferros de passar roupa e pentes de ferro que os primeiros métodos de alisamento em cabelos afro foram desenvolvidos pelos negros norte-americanos.

 

Mais tarde, as técnicas para deixar o cabelo liso foram se tornando mais complexas a ponto de serem lançados no mercado produtos de efeito permanente, como o Marcel, a pasta de soda cáustica, o henê, o relaxamento, o permanente afro e as tantas variações de escovas progressivas e definitivas que existem por aí. Outros aparelhos de efeito liso temporário, como os dispositivos modeladores e as pranchas de cerâmica (mais conhecidas como “chapinhas”) também fazem sucesso entre as mulheres de cabelo não-liso e, a cada ano que passa, ganham versões mais modernas nas prateleiras das lojas.

 

A obsessão das mulheres negras com o próprio cabelo é um dos assuntos abordados por bell hooks em diversos artigos. Uma das principais teóricas contemporâneas sobre o feminismo interseccional, hooks afirma que por trás da preocupação excessiva com a textura dos cabelos crespos, está a luta das mulheres negras com sua autoestima e perspectiva de futuro. Segundo a filósofa, elas percebem os próprios fios como um “inimigo”, um problema a ser resolvido, “uma parte do corpo que deve ser controlada”.

 

No artigo “Alisando o Nosso Cabelo” (2005), hooks declara que muitas mulheres acabam aderindo à química por causa do controle sobre o corpo negro, que é estimulado por uma sociedade que considera o cabelo crespo feio e ruim. “Para cada uma de nós, passar o pente quente é um ritual importante. Não é um símbolo de nosso anseio em tornar-nos brancas. Não existem brancos no nosso mundo íntimo. É um símbolo de nosso desejo de sermos mulheres. É um gesto que mostra que estamos nos aproximando da condição de mulher”, escreve a ativista.

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Nas plantas da janela da sala de Skarleti, um grampo perdido entre as folhas - Foto: Gabriela Isaias

Skarleti Ully posa para foto após finalizar o penteado de uma cliente - Foto: Gabriela Isaias

De um padrão ao outro

Depois da febre dos alisamentos que fizeram a cabeça das mulheres nos anos 2000, o cabelo natural voltou com toda a força. Nos últimos anos é possível notar que cada vez mais mulheres estão assumindo seus cabelos crespos e cacheados, deixando de lado a aparência lisíssima que foi febre pouco tempo atrás. Inspiradas pelos discursos da militância negra, o público feminino começou a refletir sobre os motivos que levaram tantas mulheres a optar pelo cabelo alisado e passou a fortalecer um movimento reverso à química nos fios: a transição capilar.

 

“O principal não é você assumir o seu cabelo afro, mas aprender a aceitar a estrutura e a forma dele”, explica Jessica Silva, 25, criadora do Estúdio AfroPop, um projeto que fornece tranças africanas para mulheres periféricas a preços populares. Estudante de Serviço Social na Uerj, a trancista conta que quando decidiu deixar o relaxamento de lado e cortar a parte alisada, não quis ficar com o cabelo muito curto e optou por longas tranças feitas com cabelo sintético até que os fios naturais chegassem a um comprimento maior. “Depois, quando já tava com o meu cabelo natural assim, grandinho, eu parei de usar trança e fiquei com ele black”, diz.

 

Por ser um penteado “baixo”, com caimento ao redor do rosto parecido com os dos cabelos lisos, as tranças funcionam como pontapé inicial na busca por uma identidade negra. Porém: “Não é só você fazer trança e ‘pronto, me aceitei’”, destaca Jessica. A jovem afirma que o penteado costuma ser bastante utilizado por mulheres que desejam um cabelo afro volumoso após anos de química, mas que ainda não estão seguras de assumir uma textura tão estigmatizada ao longo dos anos. “Além da transição estética existe uma transição mental que é muito importante porque é quase uma reeducação”, completa.

 

Liana Mascarenhas, 30, trancista há mais de 11 anos, acredita que muitas mulheres negras que se despedem da “ditadura” do liso em busca de liberdade, acabam caindo em outro esquema perigoso dentro dos próprios padrões da beleza negra. “Elas pensam ‘vou assumir a minha negritude sem ser mal vista pelas pessoas, vou dar um jeito de continuar bela dentro dos critérios da minha raça, dentro dos padrões negros’. E o que vai ser legal pra um padrão negro? Uma trança”, explica Liana. Ela ressalta ainda que, dentro dos ideais de beleza, o cabelo afro tem certas exigências para ser bem aceito: “Até aceitam ter black, mas tem que ser um black cacheado, definido, perfeito”.

A escolha das tranças durante o abandono da química também é um meio de diminuir a diferença de texturas do cabelo em transição, já que a raiz costuma nascer crespa enquanto o comprimento permanece alisado. Segundo Liana, a trança faz o cabelo crescer forte e saudável: “A trança é o penteado que menos agride o fio”, diz. Por também ser prático e não necessitar de escovações, os cabelos entrelaçados ganham cada vez mais espaço entre o público feminino, assumindo novos significados ao longo do tempo.

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Nem tão distantes assim

Séculos, um oceano Atlântico e novas histórias separam as tranças de hoje daquelas elaboradas em solo africano. A técnica é a mesma. O efeito das mechas trançadas também é bastante parecido. Mas os significados dos penteados elaborados pelos povos negros no Brasil são recriados a todo o tempo. É isso que explica a pedagoga Nilma Lino Gomes no livro “Sem Perder a Raiz: Corpo e Cabelo Como Símbolos da Identidade Negra” (2006).

 

Para a autora, os modos de decorar o cabelo crespo no Ocidente são criações dos negros em diáspora, e não dos negros africanos. Nilma afirma que, nas sociedades da África contemporânea, tranças, dreadlocks e black power são considerados estilos de Primeiro Mundo. “Assim, podemos dizer que, na diáspora, a simbologia do cabelo do negro não se perdeu totalmente, porém assumiu novos sentidos, e um deles é o político”, escreve a autora.

 

Homens e mulheres afrodescendentes utilizam seus corpos e saberes para perpetuar as tradições africanas e protagonizam, mesmo que inconscientemente, uma luta cultural contra os padrões dominantes. Para Nilma: “Apesar das contradições e mesmo tendo sido ‘plantada’ e/ou ‘replantada’ em condições adversas, a africanidade recriada no Brasil e que compõe a identidade do negro brasileiro continua sendo uma característica marcante. A planta originada dessa raiz certamente não terá a mesma aparência que o tubérculo que a originou, mas ambas continuam sendo parte uma da outra, e uma não subsiste sem a outra. É assim que se dá a relação entre o negro da diáspora, o cabelo e a herança cultural africana”.

As pessoas entram na transição, mas elas buscam um tipo de cabelo cacheado que não é a realidade delas: a maioria dos blacks não forma cachos. Então quando as meninas passam pela transição e veem que o cabelo não fica com cachos definidos elas ficam meio frustradas. Porque tem um padrão pra você ter um black: ele tem que formar cacho. Se não for um black cacheado ‘não tá bom’, entende?”

LETICIA CASTRO, TRANCISTA

Skarleti costuma trançar em frente à janela de sua casa, onde a iluminação natural é mais forte - Foto: Gabriela Isaias

Todo mundo quer opinar sobre a atriz loira que colocou tranças rasteiras ou falar da famosa revista de moda que fez um editorial de inspiração indígena com modelos brancas. Também tem o caso das figuras que caricaturizam os cabelos black power e das cantoras de pop que usam batidas dos ritmos negros norte-americanos para fazer sucesso nas paradas musicais. Essas e tantas outras situações fazem parte da “indústria cultural”, que se apropria de símbolos de civilizações historicamente exploradas e dizimadas em prol do lucro capitalista e da perpetuação do racismo.

 

Falar sobre apropriação cultural muitas vezes gera discussões que nem sempre esclarecem as consequências que o apoderamento estrangeiro de uma cultura pode gerar. Para Jaciara Júlia Carvalho, 28, mais conhecida como Jacy e trancista há 14 anos, o tema não pode abrir precedentes para achismos: “Não parte de uma pessoa pra outra, mas de um coletivo pro outro. Isso é muito maior do que eu e você, do que o individual”, afirma. “Apropriação cultural nada mais é do que o capitalismo pegar algum item de alguma cultura, esvaziar o significado daquilo e lucrar em cima disso”, afirma Jacy, ressaltando que muito da cultura negra já foi roubado e comercializado.

 

A habilidade com as tranças levou a carioca a criar um canal no Youtube que hoje conta com mais de 100 mil inscritos. Além de compartilhar tutoriais de penteados e maquiagens, dicas e experiências pessoais, Jacy procura abordar temas frequentes no cotidiano das mulheres negras. Ela observa que, quando um produto entra no mercado da moda e é produzido em larga escala, acaba se tornando item de desejo e lucro, independentemente da origem que ele tiver. “Vão pegar aquele item e trazer pra cultura deles, dando outro nome, se necessário”, diz, acrescentando que costuma receber muitas dúvidas de seus seguidores sobre o assunto.

 

Jacy comenta ainda que há dois jeitos de lidar com a questão: se revoltar e criticar ou utilizar a situação como uma forma de lucrar também. “Eu vou crucificar uma mulher negra que trabalha com tranças e quase não tem clientes, quando ela receber um grupo de amigas brancas querendo colocar trança? Ela tem filhos pra criar, tem contas pra pagar e ela não vai pagar a conta dela com ativismo negro”, afirma, ao citar um tema polêmico entre as trancistas, sobre trançar pessoas claras ou não. “Tem um limite do que a gente fala e do que a gente pode fazer”, diz Jacy, reforçando que “não é uma questão individual que vai definir o que é ou não apropriação cultural”.

 

Porém, a trancista concorda que as leituras sociais diferem a depender da cor de quem usa o penteado: “Quando veem uma pessoa negra usando não é bonito, mas quando tá na passarela é fashion”. Jacy diz também que a maioria das pessoas brancas que utilizam tranças africanas sabem que aquele é um símbolo de resistência negra, mas quando são questionadas “têm o discurso pronto e falam ‘ah, somos todos iguais, eu posso usar também’”. Segundo a trancista, ao se justificarem, muitos também usam como argumento as origens imprecisas do penteado: “Falam ‘ai, porque o povo de não sei da onde inventou as tranças bem antes de vocês’”, simula a youtuber. “Dá pra perceber que as pessoas que dizem isso querem esvaziar as tranças de significado pra poderem, vamos dizer, ‘usar em paz’”.

 

Para Skarleti Ully, 25, trancista mineira que mora no Rio há quatro anos, desconhecer a história das tranças é uma realidade comum até mesmo no mundo negro. Para Skarleti o que mais incomoda é quando o cliente tem consciência da importância cultural do penteado e ainda assim usa como um acessório banal. “É isso que ofende”, comenta, enquanto desembaraça o cabelo de uma mulher sentada no sofá de sua casa. “Eu acho que é importante a pessoa estudar tanto a trança quanto o turbante para além do simples fato de carregar qualquer um dos dois na cabeça”, diz ela.

 

Skarleti fala que também é possível encarar pessoas brancas usando tranças como uma forma de valorização da cultura afro: “É bonito quando você vê uma pessoa que não é da sua cultura e que entende o significado daquilo”. Para ela, essa é uma forma de popularizar um penteado que há muito tempo é visto como exclusivo do povo negro. “Então eu acho que desde que a pessoa use com respeito ela não vai estar me ofendendo”, finaliza a trancista.

Por que é bonito falar que é ‘a trança das Kardashians’, ‘trança boxeadora’? Não. É trança nagô, é trança preta africana. É muito nosso e sempre foi. Existe um embranquecimento pra ser aceito: só aparece na revista depois que uma branca usa. [...] A gente já é massacrado há tanto tempo, por que vamos deixar passar batido agora? São essas pequenas coisas que a gente tem que se atentar. A gente tem que ter força pra informar os nossos. É cansativo demais, mas é necessário”

PRISCILLA SILVA, BANCÁRIA

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“Você vai passar por vários episódios de racismo por estar usando seu cabelo [crespo] natural mesmo que de fato ele não signifique uma consciência racial e política”

JESSICA SILVA, TRANCISTA

"A primeira coisa que a gente escuta quando tá de trança é: 'como você lava?", diz Jullyet - Foto: Gabriela Isaias

A trancista Jullyet Souza posa com a cantora Nathália Negrão - Foto: Gabriela Isaias

Como diz a música

A música no rádio diz que “é pra tombar”. Tombar: “derrubar, fazer cair, curvar”, explica o dicionário mais tradicional. Abalar estruturas, demolir ideologias, destruir conceitos de uma sociedade ultrapassada: é assim que alguns jovens das grandes cidades brasileiras têm agido. Cores vivas, estampas étnicas, cabelos cheios e coloridos, referências constantes ao continente africano. Essa é a Geração Tombamento, composta em sua maioria por negros periféricos que utilizam a estética como forma de afirmação política.

 

“O Tombamento veio pra promover, pra colocar o negro em foco”, diz Jullyet Souza, enquanto se ajeita em uma cadeira no canto da sala de casa, no Complexo do Caju. Ela preparava-se para emendar outra frase até ser interrompida por um som alto vindo da janela; é a batida pesada de um funk. “Eu não acredito que esse cara colocou essa música! É muito machista”, reclama Jullyet, mostrando irritação. Logo a música do vizinho é esquecida e a trancista volta a falar suas opiniões quanto à nova geração de negros que vem mudando o cenário da moda no Brasil. “O grande problema é que a Geração Tombamento é midiática e totalmente capitalista”, continua, até sorrir, percebendo que a trilha sonora agora é outra. “Graças a Deus esse homem trocou essa música!”

 

O riso de Jullyet é divertido, mas não dura muito tempo. Ela logo retorna à uma expressão séria de quem sabe que o assunto, em si, é controverso. Nascida em Rio das Ostras, a moça de 29 anos descobriu as questões negras através do coletivo de música do qual fazia parte na adolescência. “Eu sou ligada ao quinto elemento do hip hop, que é o conhecimento. E dentro do hip hop tem muito essa questão da estética”, explica, contando que a partir dali veio a sua conscientização racial.

 

Para Jullyet, o empoderamento negro ainda não chegou onde deveria chegar. “O Tombamento não chegou na favela, que é onde tá a maioria dos pretos. A favela é que fortalece todas as outras coisas; se não chega aqui não tem que chegar em outro lugar, entendeu?”, questiona. “Se a Zona Sul tá empoderada pouco me importa porque é aqui que a gente precisa empoderar, são as nossas crianças que a gente precisa fortalecer”, diz, acrescentando que, para uma mulher negra da favela chegar a um nível de conscientização e liberdade sobre si mesma tem que passar por um processo “doloroso e caro”.

 

A trancista observa que o acesso à moda e aos acessórios valorizados pela Geração Tombamento é difícil e restrito aos negros com alto poder aquisitivo. “O empoderamento tá nos bailes, tá na roupa que você veste. Se você chegar num determinado lugar e não tiver com um tênis tal, com uma roupa tal e o seu cabelo não tiver diferente ou bem arrumado, você não é aceita”, argumenta. Jullyet afirma que a própria cultura das tranças, da qual muitos jovens do movimento são adeptos, não está ao alcance de todos, já que ultrapassa o poder financeiro das parcelas mais baixas da população.

 

Além de fazer alguns projetos como modelo, Jullyet tem sua fonte de renda proveniente do trabalho como recepcionista de eventos e faz extras trançando cabelos. Ela diz ter percebido que a cultura do consumo propagada pelo Tombamento acaba gerando exclusão. “Hoje existe uma disputa do ‘ser empoderado’”, completa, dizendo que, nos últimos tempos, a ascensão do empoderamento negro fez aumentar a procura por seus serviços.

 

Jullyet conta que o local onde costuma comprar o material para trançar é um bairro de referência tanto para os jovens da Geração Tombamento, quanto para o universo das tranças e do cabelo afro no Rio de Janeiro. É quando ela pausa por um breve instante e diz, com um suave sorriso: “Quando você falar de trancista, você tem que falar de Madureira”.

A estética pode ser resistência, mas só ela não sustenta o resistir. [...] A minha resistência não pode ser só o meu cabelo porque o cabelo não fala pela mente. Você tem que buscar mais do que um black, mais do que uma trança. Você tem que ter fundamentos pra bancar a sua posição porque você vai se deparar com as resistências de outras pessoas e, se você não tiver pronta pra isso, é você que vai ser tombada”

MICHELLE ALVES, RAPPER

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É um movimento puramente estético? Se é, qual o problema? Não é comunicação? Não tiveram desfiles na indústria da moda que mudaram pensamentos? Por que não pode ser isso também?”

FABIO ALVES, EMPRESÁRIO

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